quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

vigília

na minha porta há um homem. Um incansável homem. Horas a fio, todas as noites. Não, eu não vou lá fora. Não, eu não ofereço abrigo. Apenas ouço o seu sinal. Horas a fio, todas as noites. Se ele tem sede, não sei. Mas deve me ver acender a luz da cozinha umas duas vezes, o calor é demais. E deve perceber que demoro, tenho fome. Já ele, não sei. E cá nos meus livros, entre uma página e outra, olho pela persiana e lá está ele. Parado. Sozinho. Na minha porta. Por repetir o mesmo gesto todas as noites, até os vizinhos mais novos sabem da sua existência. De tanto tempo, o meu cachorro nem rosna mais, já o reconhece. O incansável homem. Nos sabemos insones e talvez eu saiba mais: tem ele o mesmo nome do meu avô, o mesmo nome do meu pai e o mesmo nome do meu irmão. Às 5h50min, pontualmente, o jornaleiro se aproxima e meu cachorro late, ávido pelo embrulho que cairá em segundos no jardim. Então eu me apresso, abro a porta e pego o jornal, ligeiramente molhado e mastigado. Do jornaleiro nunca vi o rosto. Mas o incansável homem está lá, na minha porta. O dia já está claro e ele pode partir.
- Bom dia, Sr. Antonio.
Responde-me com um apito, o último sinal da nossa mútua e longa vigília. Monta em sua bicicleta e some adiante. Fecho a porta, guardo o jornal e me preparo para dormir. Horas a fio. Todas as manhãs.

3 comentários:

  1. Sigo admirando sua escrita firme, interior, forte, lírica.

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  2. o habitual que não cansa, preenche. rs
    O vigia da bicicleta: um clássico.

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